09 janeiro 2009

Ano Novo - vida nova

Terminada mais uma prova deste circuito sinuoso, composto por 365 curvas, distribuídas por 12 classificativas, iniciamos nova prova que se prevê bastante difícil, dado o denso nevoeiro e o piso escorregadio que se alastra ao longo do percurso.
Embora prevenidos para possíveis intempéries, todos os cuidados serão poucos para evitar alguns despistes.
Desta vez, teremos 3 neutralizações ao longo do percurso que serão as eleições que nos esperam, que poderão condicionar a aproximação à meta.
Sejamos positivos e confiemos na capacidade de improviso e na perícia dos portugueses, para contornarmos as dificuldades que certamente nos vão surgir.
Quero neste breve apontamento, pedir a todos as maiores cautelas e desejar-vos uma prova o mais agradável possível, sem percalços, de forma a que todos possam chegar à meta com um saldo verdadeiramente positivo.
FELIZ 2009

8 comentários:

Anónimo disse...

A escuridão de Jorge Luís Borges

Mírian Freitas


Genebra, 1985.


De manhã Borges acordou com os olhos acinzentados, dormidos e úmidos. Passou ligeiramente uma das mãos pela cabeça e saiu arrastando os chinelos pela casa. Caminhou até a varanda para ver o vulto do dia. Tudo estava calmo. O dia parecia acontecer devagar. Sentiu na pele os vestígios da claridade, o solzinho muito miúdo amarelando o seu olfato. Sentia tudo muito de perto, mesmo sem enxergar nada. Já não possuía mais nenhuma visão dentro dos olhos. Estava cego.

Para Borges a cegueira era apenas um estilo de vida como qualquer outro. Muitas vezes, preferira as sombras à luz. Os poetas tinham qualquer coisa de sombrio dentro de si. Nem por isso eram apenas tristes ou infelizes. Eram, pois, homens capazes de enxergar dentro da escuridão. Para ele a cegueira não significava a morte. Tudo não estava ainda acabado. As coisas continuavam no seu percurso normal. Por isso vivia com intensidade cada dia, mais tristes ou menos tristes, felizes ou não, ele ainda possuía olhos e desejo pela vida.

No seu mundo de sombras, Borges tateava a infinita escuridão sem desespero. Sabia que estava ali dentro e dali não sairia mais, porém não se sufocava por causa da sua condição de cego. Ser cego não é ser triste. E assim ele continuava elaborando na mente seus textos para ditá-los a Kodoma, sua secretária que mais tarde se tornaria sua esposa. A única coisa que o incomodava um pouco naquele seu negro mundo era que não poderia mais ver as cores. Ah, como sentia prazer vendo o mundo das cores! Lamentava por não poder ver mais o vermelho, cor que sempre o seduzira a pensar num poema ou em qualquer coisa a mais. As últimas cores que vira foram o verde, o amarelo e o azul. Depois mais nenhuma cor. Nem o preto. Mas nem por isso ele desistiu. Apenas sentia que o seu corpo estava no escuro, mas sua alma não. Havia muita luz ao redor do mundo dele. Mesmo não enxergando podia imaginar tudo porque sabia como eram as coisas. Afinal já vivera no mundo das luzes do outro lado de lá. Certamente sentia saudades de ver muitas coisas. Quando comia uma maçã, por exemplo, sentia desejo de vê-la. Aquela fruta de casca sedutoramente vermelha em suas mãos causava-lhe fome, vontade de ver. Saudades daquilo que já se apagara dentro dos olhos.

Em muitas manhãs como aquelas Borges sentia a luz entrando-lhe nos olhos e espalhando-se por todo o seu corpo, aquecendo-lhe a pele e os cabelos. Lá fora sentia que as aves piavam eufóricas com os mistérios dos homens. As aves sobreviveram ao inverno rigoroso de Genebra e agora tagarelavam bem perto dele, na La Grand Rue, 28. Mesmo sentido-se em casa, pois adorava estar naquele país, tinha saudades de Buenos Aires. Andar naquelas avenidas da capital argentina na primavera era como escrever um poema no escuro. Doía de tão intenso que era. Sabia que Buenos Aires estaria lá, sempre esperando por ele de braços e abraços abertos. Por isso não se precipitaria em voltar naquele momento de saudades. Pois ainda precisava ver mais um pouco as belezas suíças daquele mundo.

Um cego não vive num mundo de total escuridão. Ele enxerga. De olhos fechados Borges lia o seu imaginário. Em voz alta dizia seus poemas a Kodoma e ela cuidadosamente os escrevia como se estivesse bordando uma toalha de mesa. Borges apertava uma mão contra a outra ao elaborar em voz alta seus poemas na mais profunda magia do silencioso mundo das sombras. Era nele que o escritor vivia agora buscando não se afligir pela ausência das coisas enquanto matéria. Tateava o escuro para não se perder das suas sensações mais preciosas. Porque tinha a consciência de que todo escritor precisava de sentir o que quer que fosse para escrever e, através das sensações, rastrear as palavras uma a uma para compor o seu texto. Sempre dizia que se pudesse enxergar novamente iria ler todos os livros que ainda não teve a oportunidade de ler. Mas agora com oitenta e tantos anos vivia na sua escuridão sem poder ler os próprios livros, entretanto guardava-os na memória e sempre que preciso os revisitava nas sombras de suas lembranças.

Ainda de pé na varanda, Borges sentia tudo muito de perto. Mesmo que fosse um ser solitário, ainda assim, sempre se sentira rodeado pelas coisas. A solidão de Borges era plena; aquele tipo de solidão que os artistas sentem porque vivem intensamente o processo de criação. Ouvindo os pios das aves entendia que haveria sempre um segredo a mais para o homem decifrar. Aquela melodia não era triste, porém era solitária. Isso ele podia ver. Alguns instantes a mais do lado de fora e então se apressou para regressar à sala porque sentia-se também como uma ave que necessitava, desesperadamente, soprar uma melodia de palavras aos ouvidos de Kodoma. Às vezes ele era assim: um homem de impulsos inesperados. Mesmo na escuridão ainda se sentia vivo. Queria, mesmo sendo um cego, viver. As sombras não lhe amputariam a ânsia pela vida. Ao contrário, dizia sempre: "devo certas dádivas às sombras”.

Agora sentado numa poltrona forrada de ocre, pensava num poema. Esfregando as mãos uma na outra, parou os olhos no escuro, pensou e depois disse a Kodoma o primeiro verso de seu poema: “Eu sou uma ave atravessando a infinita escuridão do homem”. Ela o olhou despida de qualquer sombra e delicadamente escreveu numa página branca aquelas palavras de Borges.

Anónimo disse...

Jorge Luís Borges

Ao ler a descrição do memorial inaugurado na passada sexta-feira, em Lisboa, ao Arco do Cego, a Jorge Luís Borges, concluo que deve ser muito belo.
O poeta cego, que via mais do que os que vêem e que continua a ensinar-nos a ver a vida, tem um monumento entre nós. Um dos meus poetas preferidos. Um encantador. Um mágico da alma.
Na próxima vez que for a Lisboa tenho que ir dar uma mirada ao monumento do autor do “Poema aos amigos”.
Um grande amigo.


Poema aos amigos

Não posso dar-te soluções
Para todos os problemas da vida,
Nem tenho resposta
Para as tuas dúvidas ou temores,
Mas posso ouvir-te
E compartilhar contigo.

Não posso mudar
O teu passado nem o teu futuro.
Mas quando necessitares de mim
Estarei junto a ti.

Não posso evitar que tropeces,
Somente posso oferecer-te a minha mão
Para que te sustentes e não caias.

As tuas alegrias
Os teus triunfos e os teus êxitos
Não são os meus,
Mas desfruto sinceramente
Quando te vejo feliz.

Não julgo as decisões
Que tomas na vida,
Limito-me a apoiar-te,
A estimular-te
E a ajudar-te sem que me peças.

Não posso traçar-te limites
Dentro dos quais deves actuar,
Mas sim, oferecer-te o espaço
Necessário para cresceres.

Não posso evitar o teu sofrimento
Quando alguma mágoa
Te parte o coração,
Mas posso chorar contigo
E recolher os pedaços
Para armá-los novamente.

Não posso decidir quem foste
Nem quem deverás ser,
Somente posso
Amar-te como és
E ser teu amigo.

Todos os dias, penso
Nos meus amigos e amigas,
Não estás acima,
Nem abaixo nem no meio,
Não encabeças
Nem concluís a lista.
Não és o número um
Nem o número final.

E tão pouco tenho
A pretensão de ser
O primeiro
O segundo
Ou o terceiro
Da tua lista.
Basta que me queiras como amigo

Dormir feliz.
Emanar vibrações de amor.
Saber que estamos aqui de passagem.
Melhorar as relações.
Aproveitar as oportunidades.
Escutar o coração.
Acreditar na vida.

Obrigado por seres meu amigo.

Jorge Luís Borges

Anónimo disse...

Biografia de Jorge Luís Borges
Maior escritor da literatura Argentina
Jorge Luís Borges nasceu em 24 de agosto de 1889 numa casa confortável localizada nos subúrbios de Buenos Aires, filho de uma família de classe média na Argentina. A casa de Borges era bilíngüe, herança da família de seu pai, com origens britânicas. Graças a sua avó, aprendeu a escrever em inglês antes do espanhol, e aos 9 anos traduziu do inglês o livro "O Príncipe Feliz", de Oscar Wilde.

Seu Pai, Jorge Guillermo Borges Haslam, um advogado e psicólogo, sofreu de uma grave doença na visão, e em 1914, Jorge Luís Borgese sua família se mudaram para Genebra, onde seu pai passou a ser assistido por um especialista local. Em Genebra, Borges aprendeu francês e ensinou alemão, em 1918 se tornou bacharel pelo Liceu Jean Clavin. Após o fim da I Guerra Mundial, Borges e sua família passaram ainda três anos na Europa, morando nas cidades de Lugano (Suíça), Barcelona, Maiorca, Sevilha e Madri. Neste período Jorge Luís Borges entrou em contato com diversos escritores que viriam a influenciar a sua carreira literária.

Ao voltar à Argentina, em 1921, Borges se lançou de vez como escritor, escrevendo poemas e ensaios para jornais locais. Borges seguia o estilo do Criollismo, chegando ao ponto de ser evocado o grande apostolo deste estilo literário. Foi nesta época que ele publicou, em 1923, a sua primeira coletânea de poesias, chamada Fervor de Buenos Aires.

Em 1938 o pai de Jorge Luís Borges morre, o que é um grande choque para o escritor devido a estreita relação que eles tinham. Um ano depois, 1939, Borges publica o livro Pierre Menard, Autor de O Quixote, em que trata da relação entre pai e filho e sobre o processo da autoria.

O primeiro e único emprego oficial de Borges foi de diretor da Biblioteca Pública Nacional, cargo que assumiu em 1937, e que exerceu até 1946, quando saiu por não concordar com o governo de Juan Perón, a quem ele chamava de fascista.


Na década de 50, a doença oftalmológica que havia atingido seu pai também se manifestou em Borges, que ficou completamente cego em 1955. A partir de então, sua mãe passou a morar com ele, e escrevia e lia o que ele ditava. No ano seguinte, em 1956, Borges recebeu o prêmio nacional de literatura da universidade de Cuyo. Neste mesmo ano, Jorge Luís Borges se tornou professor de literatura da Universidade de Buenos Aires, onde ficou até 1970.

O primeiro livro de Borges a ser traduzido para o inglês foi “El jardín de senderos que se bifurcan”, publicada em 19418 na Revista Ellery Queen's Mystery. Entretanto, a sua grande fama nacional só ganhou força a partir de 1960, quando ganho o prêmio internacional Prix Formentor, junto com Samuel Beckett. A partir de então foi homenageado por vários governos e universidades.

Jorge Luís Borges se casou duas vezes. Em 1967, com Elsa Astete, de quem se separou três anos depois. E em 1986, após a morte de sua mãe em 1975, com sua ex-aluna Maria Kodama, com quem ficou até morrer em pouco tempo depois, em 14 de junho 1986. A causa da morte de Jorge Luís Borges foi um câncer hepático, o autor morava em genebra na época e pediu que fosse enterrado nesta cidade.

Anónimo disse...

Jorge Luis Borges é hoje um personagem conhecido. Cego, de terno, bengala na mão, meio alheio ao redor, cabeça ligeiramente voltada para o alto: a imagem nos vem rapidamente à cabeça e evoca muitas associações. Pensamos na figura do cego-memorioso que, na tradição grega, representava aquele que nos contava do passado. Pensamos no bibliotecário-cego, também Jorge, personagem de O nome da Rosa, primeiro romance de Umberto Eco. Pensamos em alguma rua de Buenos Aires. De alguma forma, Borges está presente em nossa imaginação. E por meio de um personagem que destaca a sisudez e que combina com algumas informações de sua obra que temos mesmo antes de começar a lê-la: o escritor latino-americano do século XX mais celebrado pela crítica, citado constantemente por filósofos, influência decisiva sobre a ficção argentina e ocidental, professor e bibliotecário. Um homem clássico.



A leitura da obra (principalmente a mais divulgada, suas narrativas curtas das décadas de 1940) certamente confirmará todas essas informações, ou quase todas. No entanto, a presença de Borges na cena literária é bem anterior à construção dessa imagem, à circulação desse personagem e aos contos famosos de Ficções (1944) ou de O aleph (1949). Seus textos são bem mais diversificados do que normalmente se supõe. Borges foi poeta, contista, ensaísta. Escreveu histórias fantásticas e policiais, poemas rigidamente metrificados e versos livres, ensaios verdadeiros e falsos, textos de crítica literária e roteiros para cinema. Organizou antologias literárias e, em parceria com o também argentino Adolfo Bioy Casares, produziu de propaganda de iogurte a divertidíssimos enredos de investigação. Talvez a face menos lembrada de Borges seja a de vanguardista – e, no entanto, foi exatamente no contexto das vanguardas que a obra de Borges se iniciou.



Seu primeiro livro foi publicado em 1919 e recebeu o título de Salmos vermelhos (ou Ritmos vermelhos). Borges, que nascera vinte anos antes, morava na Europa desde 1916. Seguia, da Suíça ou na Espanha, os rumos da mobilização vanguardista. E esses Salmos – cuja cor remete à Rússia recentemente bolchevista – ecoam os ruídos da Primeira Guerra Mundial e celebram, em versos livres, o mundo de máquinas e velocidades que tanto agradava aos futuristas. Lê-lo hoje é um choque, principalmente para quem conhece a cadência e a regularidade do espanhol borgeano e de seu repertório temático e metafórico. O próprio Borges se espantou com os versos que cometera em 1919 e, em vida, nunca mais autorizou a reedição do livro. Mas sua ação de vanguarda apenas começava.



Em Madri, teve contato com Rafael Cansinos-Asséns, nome central do recém-criado ultraísmo espanhol, e publicou, na revista Ultra, o sintético “Anatomia do meu ultra”, em que defendia a possibilidade de conciliação entre a “estética ativa dos prismas” (que associava ao cubismo e ao expressionismo) e a “estética passiva dos espelhos” (futurismo). Definia, ainda, as “intenções” de seu esforço lírico: a busca da “sensação em si” por meio do ritmo e da metáfora. O tom de manifesto deixava clara sua inserção vanguardista e anunciava disposição ativa para a mudança e para a representação deformada da realidade: estava mais perto do expressionismo “prismático” do que do futurismo “espelhador”, mas, de qualquer maneira, no universo das vanguardas. Quando retornou à Argentina, em 1921, ingressou rapidamente no esforço renovador portenho. Entre 1920 e 1929, publicou 232 textos em periódicos, alguns fundados e dirigidos por ele. Principalmente liderou a produção da folha mural Prisma que, com suas duas edições (1921 e 1922), inaugurou a vanguarda argentina. Também esteve bastante presente na segunda fase da revista Proa (1924-26) e na Martín Fierro (1924-1927).



Para alguns críticos, o engajamento vanguardista correspondeu a uma “primeira fase” de sua obra, depois superada pelo Borges que, segundo ele mesmo, “caminhou gradualmente para o classicismo”. Nesse “primeiro Borges”, havia também o tom nacionalista que caracterizava o esforço das vanguardas de identificação da especificidade local. Foi isso que marcou, além dos artigos e manifestos, os ensaios que escreveu e reuniu em três livros: Inquisiciones (1925), El tamaño de mi esperanza (1926), e El idioma de los argentinos (1928). Sua leitura, hoje, é igualmente surpreendente: mostra uma orgulhosa recusa borgeana da norma culta do espanhol e o emprego repetido de argentinismos, expressões gauchescas e criollas, de extração oral. Assim, afirmava, podia “ouvir a Pátria”. Claro que esses volumes foram depois renegados por Borges, que tratou de suprimi-los para afastar a “vergonha” de tê-los escrito. Dizia que perdera o dicionário de argentinismos e, agora, sequer os entendia.



Não só os Salmos vermelhos e os ensaios nacionalistas dos anos 20 desapareceram das estantes. Muitos dos poemas publicados na década das vanguardas foram eliminados ou drasticamente alterados em edições posteriores. O que encontramos nas edições atuais dos livros de poesia datados desse período – Fervor de Buenos Aires (1923), Lua defronte (1925) e Caderno San Martín (1929) – não equivale ao que as primeiras edições continham. A mão sempre reescritora de Borges atuava para redefinir o futuro e, sobretudo, o passado de seus escritos. No entanto, uma observação atenta de sua produção vanguardista revela que talvez a mudança não tenha sido tão profunda. Que há mais continuidade do que ruptura entre o “primeiro Borges” e o “Borges maduro” que veio depois e repudiou as vanguardas. Borges, aliás, não foi apenas um dos fundadores da vanguarda argentina; foi também (num papel equivalente ao desempenhado por César Vallejo no Peru) um de seus primeiros críticos.



Antes disso, os textos dos anos 20 indicavam questões de sua obra posterior. Em “Proclama” (que saiu na Prisma de 1921), por exemplo, contrapôs-se à rigidez da tradição e “à crença arraigada em uma personalidade estática do autor”. Em dois artigos publicados em dezembro de 21 e agosto de 22, refutou a noção do clássico como conjunto fixo e uniforme de textos e caracterizou-o como um patrimônio móvel de leituras, que podia ser diversamente apropriado e que determinava a escritura. Mais importante do que a suposta personalidade do autor, era seu repertório de leituras; o escritor era, prioritariamente, um leitor que fazia suas escolhas a partir do que lia. Tradição móvel e centralidade da leitura: duas das mais destacadas características da obra borgeana, duas de suas bases conceituais, dois fundamentos de seus procedimentos literários.



Afinal, o que está por trás, por exemplo, da famosíssima obra de Pierre Menard senão a percepção de que a leitura refunda toda tradição e lhe dá novos significados? Pierre Menard (conta-nos Borges num dos textos mais conhecidos de Ficções) foi um escritor francês que resolveu, em pleno século XX, reescrever o Quixote. Não pretendia se basear no livro de Cervantes para escrever outro livro, nem encontrar algum cavaleiro andante à solta pela Europa do pós-guerra. Tampouco pensava plagiar o Quixote. Queria reescrevê-lo “palavra por palavra e linha por linha”. Sua empreitada – considera Borges – era dificílima: como a um homem do XX poderiam ocorrer as metáforas que, três séculos antes, Cervantes empregara? Como Menard, numa situação histórica e num panorama literário tão diverso da decadente Espanha de Filipe III, poderia imaginar a busca da justiça nos mesmos termos de Cervantes? Os obstáculos, porém, não desestimularam Menard. Ele não completou sua obra, mas escreveu páginas importantes. Elas eram idênticas às de Cervantes, mas superiores, porque obra de alguém que conseguiu se deslocar no tempo a ponto de perceber as relações e representá-las como um eco alterado do XVII.



Claro que Menard nunca existiu e que o ensaio em que Borges analisou sua obra é falso. Mas, em “Pierre Menard, autor do Quixote” (cuja primeira versão é de 1939), Borges debatia exatamente a infixidez das tradições. O Quixote melhor não era o de 1605; era o de sua leitura e apropriação possível trezentos anos depois. Num outro texto muito citado do “Borges maduro” e sempre tomado como exemplar de sua obra, a mesma noção reapareceu: “Kafka e seus precursores”, de Outras inquisições (1952). Após compor um breve inventário dos autores que anteciparam Kafka, Borges lançou uma questão aparentemente simples: se Kafka nunca tivesse existido, que fios ligariam esses “precursores de Kafka”? Nenhum, concluiu, e aí estava a prova de que a relação entre “precursores” e “sucessores” era mais complexa do que se costumava supô-la: não eram os precursores que definiam o sucessor, mas o sucessor que determinava uma linhagem de precursores ao combiná-los em seu texto. Ao reverter a cronologia literária, Borges, na prática, estabelecia uma relação em que o escritor se assumia como leitor e a leitura prevalecia à escrita.



A insistência borgeana na mobilidade da tradição e no papel fundador da leitura levou o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal, um dos maiores intérpretes de Borges, a afirmar que sua obra, como um todo, era uma “poética da leitura”. A mesma idéia apareceu, de forma mais prosaica, mas igualmente instigante, no próprio Borges. Quando perguntado em 1984, dois antes de morrer, sobre o trabalho do escritor, resumiu: “o escritor é um amanuense dos outros, um amanuense, bem, de tantos mestres, que talvez o mais importante seria ser o amanuense e não o gerador da frase.” Escrever, para ele, era apropriar-se individualmente, pela leitura, de um patrimônio coletivo de textos, agir como uma “memória individual do coletivo” e, assim, reunir e organizar textos alheios numa nova combinação, reordenando a tradição para apresentá-la em nova roupagem e com outros sentidos. O que era sugerido no jovem Borges tornara-se decisivo no maduro. A experiência vanguardista, mais do que ultrapassada, havia assentado em Borges.



Não foi apenas o passado vanguardista que Borges assimilou e transformou. Releitor e reescritor contínuo de seus textos, nunca parou de mudá-los nas edições sucessivas. Mesmo os livros que o consagraram definitivamente – Ficções, O aleph ou Outras inquisições – e que lhe garantiram os principais prêmios literários (com exceção do Nobel) sofreram alterações. A primeira edição das Obras completas, em 1953, foi vista por ele como uma oportunidade de reescrever, incluir ou eliminar partes. Também não ficou ilesa de correções a obra em colaboração – ou ao menos parte dela, a realizada com Adolfo Bioy Casares. A republicação das histórias assinadas, nos anos 40, por Honorio Bustos Domecq e B. Suárez Lynch (pseudônimos que os reunia e inicialmente os encobria) ou as novas histórias escritas em parceria nos anos 70 variaram em relação às primeiras versões.



A disposição borgeana de reescrever e de variar os vínculos com a tradição era também – notou a crítica Annick Louis – uma tentativa de controlar (ou orientar) a forma como sua obra era lida a cada tempo. Junto com a defesa da mobilidade da tradição e do primado das leituras, esse esforço de Borges confirma algo que, durante muitos anos, lhe foi negado: sua preocupação com a história e com a própria presença (mesmo se muitas vezes silenciosa) no espaço público. Da década de 1950 até a de 1980, prevaleceu, entre estudiosos de sua obra, a convicção de que o apego de Borges a um “espírito clássico” lhe conferia uma espécie de atemporalidade, uma indisposição para o presente. A figura do cego-memorioso reforçava a imagem e ele mesmo se empenhou, em declarações políticas estapafúrdias, em se mostrar alheio à realidade. No entanto, críticos recentes – Davi Arrigucci Junior, Silvia Molloy, Daniel Balderston, Beatriz Sarlo – perceberam que Borges não era estranho à história; apenas a tratava de forma peculiar. Agia perante a história, em alguma medida, da mesma forma como atuou nas vanguardas: com ímpeto, mas com a desconfiança inevitável de quem sabe que nada é estático e a convicção de que ninguém deve se vangloriar da atualidade do que escreve. Um escritor que ingenuamente se acreditasse original e inovador poderia fazê-lo; Borges, não. Ele se considerava prioritariamente um leitor – o que repetiu insistentemente em entrevistas. E exatamente por ser um escritor-leitor pôde ser original, inovador e ultrapassar em muito o personagem que parece falsamente alheio ao mundo que o cerca. Pôde propor, viver e abandonar as vanguardas. Construiu a obra que a crítica tanto celebra e que, mais de vinte anos depois de sua morte, seus leitores compreendem cada vez melhor.



[Esse texto foi originalmente publicado no número especial Cadernos Entrelivros – Panorama da Literatura Latino-Americana, número 7, junho de 2008]

Anónimo disse...

Cultura
Literatura: Memorial a Jorge Luís Borges descerrado em Lisboa na presença da viúva e de Saramago

Lisboa, 10 Dez (Lusa) - Um memorial em homenagem ao escritor argentino Jorge Luís Borges vai ser descerrado sexta-feira, em Lisboa, com a presença da viúva, Maria Kodama, de José Saramago e do presidente da autarquia, António Costa.


Uma nuvem em mármore, simbolizando a imaginação, e a mão de Borges, retirada de um molde pelo escultor argentino Federico Brook, que o conheceu, são os elementos principais deste monumento que ficará no Jardim do Arco do Cego e incluirá ainda parte do poema "Os Borges", onde o autor alude às suas origens portuguesas.

O secretário-geral da Casa da América Latina (CAL), Mário Quartim Graça, revelou hoje à Agência Lusa que a ideia de criar um monumento a Jorge Luís Borges (1899-1986) surgiu em 2005 pela Embaixada da Argentina em Portugal, "mas acabou por não ir avante por falta de financiamento".

A CAL "decidiu este ano, no âmbito das comemorações do décimo aniversário, retomar essa iniciativa para assinalar de forma duradoura esta data e homenagear Jorge Luís Borges", justificou.

Com o financiamento dos materiais usados para a peça assegurado pela CAL, e também com o apoio da viúva, da Câmara Municipal de Lisboa (CML), da Embaixada da Argentina, do Ministério das Relações Exteriores da Argentina, e ainda da CP - Comboios de Portugal, a iniciativa vai ser concretizada sexta-feira.

Federico Brook também ofereceu o projecto do monumento, que inclui uma mão de Borges em bronze feita pelo escultor quando o conheceu.

Com cerca de dois metros e pesando duas toneladas, o memorial ao escritor argentino - com uma vasta obra poética criada ao longo de 50 anos - tem como material principal granito português cinzento escuro.

O poema "Los Borges", onde alude às origens portuguesas - o bisavô nasceu de Torre de Moncorvo - foi inscrito no monumento em castelhano e em português: "Nada o muy poco sé de mis mayores portugueses, los Borges: vaga gente que prosigue en mi carne, oscuramente, sus hábitos, rigores y temores".

Jorge Luís Borges "não tinha ainda qualquer referência do género em Lisboa, nem uma rua, nem qualquer construção em sua memória. Esta foi uma boa oportunidade para criar o memorial", observou Mário Quartim Graça sobre a peça que será descerrada às 12:00 de sexta-feira no Jardim do Arco do Cego.

"Será uma forma de incentivar os lisboetas a aprofundar o seu conhecimento sobre um dos grandes legados literários do século XX", salientou Mário Quartim Graça.

Nascido em Buenos Aires no dia 24 de Agosto de 1899, viajou com a família para a Europa, onde se instalou em Genebra, depois para Espanha, onde entrou em contacto com o ultraísmo, um movuimento poético de vanguarda, na altura.

Quando regressou à Argentina, em 1921, fundou com outros importantes escritores a revista "Proa", e, em 1923, publicou o seu primeiro livro de poemas "Fervor de Buenos Aires". Desde então adoeceu dos olhos, fez sucessivas operações às cataratas e perdeu quase por completo a visão em 1955.

Referiu-se à cegueira como "um lento crepúsculo que já dura mais de meio século".

Para superar a falta de visão ditou livros de poemas, contos e ensaios, criando uma obra literária universal traduzida em 25 idiomas, levada ao cinema e à televisão.

AG.

Lusa/Fim

Anónimo disse...

O Fazedor

Jorge Luís Borges


[Nascido em 1899 em Buenos Aires, Jorge Luís Borges vem a falecer em Genebra em 1986, tendo vivido em Madrid entre 1919 e 1921. Regressa, a Buenos Aires no período entre as duas grandes guerras e funda as revistas Prisma e Proa, onde publica a maior parte da sua obra poética. Cego desde 1955, continuará a escrever, como Homero. Destacam-se publicações como O Fazedor (1960), El Otro, el Mismo (1964), Elogio da Sombra (1969), O Ouro dos Tigres (1972) e Os Conjurados (1985). Publicou, ainda na área do ensaio, Inquisiciones (1925), Nuevas Inquisiciones (1952) e Nueve Ensayos Dantescos (1982). No que toca à narrativa, publica a História Universal da Infâmia (1935, O Aleph (1949), O Relatório Brodi (1970), O livro da Alma (1975) e Rosa Y Azul (1977).]


³³³³³

Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, onde bem podia haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.

Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estre­las, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. «Já não verei — percebeu — nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moe­da sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho.

A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter com o seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como se o não ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um punhal de bronze, belo e carregado de poder, que a criança tinha furtivamente cobiçado. Agora segurava-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai dizia: «Que alguém saiba que és um ho­mem», e havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e batalhas a obscuridade salobra. O que procurava era o preciso sabor daquele momento; não lhe importava o resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina ensan­guentada.

Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe enviaram os deuses, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu, e ele procurou-a por galerias que eram como redes de pedra e por declives que se afunda­vam na sombra. Porque lhe chegavam essas memórias e porque lhe che­gariam elas sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?

Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mortais, onde agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deu­ses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.


Borges, Jorge Luis, O fazedor
(Obras Completas Vol.II), Lisboa, Teorema.


http://www.fcsh.unl.pt/borgesjorgeluis/textos
borgesjorgeluis/textos3.htm

Anónimo disse...

Obra de Jorge Luis Borges é para Saramago a fisioterapia da alma

A vida e obra do argentino revista pela sua viúva e pelo Nobel português
Foi com a leitura do poema Elegia que se iniciou na passada sexta-feira, na Biblioteca Nacional, a conversa entre José Saramago e a escritora e tradutora María Kodama, antiga companheira de Jorge Luis Borges. Depois de um encontro em Lanzarote, os dois autores voltaram a reunir--se em debate público com a vida e obra de Borges como pano de fundo.

A palestra-colóquio intitulada "E se falássemos de Borges?", organizada pela Fundação José Saramago, é um dos primeiros eventos que esta instituição criou para "mexer com o movimento literário nacional", como revelou a presidente da fundação, Pilar Saramago, que anunciou mais iniciativas. A primeira ocorrerá dia 10 de Julho no Teatro São Carlos e será uma sessão em torno da obra de Jorge de Sena, com a presença dos escritores Eduardo Lourenço, Pedro Tamen e Jorge Fazenda Lourenço. Saramago adiantou também futuras sessões dedicadas a José Rodrigues Miguéis e Raul Brandão.

Apesar de terem sido os contos do escritor argentino que "lhe deram grande fama internacional", María Kodama revelou à plateia que "Borges sempre se sentiu um poeta e queria ser recordado como tal, mas tinha constantemente a preocupação de não conseguir chegar ao poema perfeito". A antiga companheira de Borges recordou que a primeira fase da obra do argentino foi dedicada à poesia, mas "depois de ter sofrido um grave acidente na cabeça receou ter perdido a capacidade intelectual para escrever poemas". Devido a este acontecimento, o escritor voltou-se para a escrita de contos. Mais tarde, "quando perde a visão retoma a escrita de poemas, uma vez que eram de fácil memorização".

Borges foi definido por María Kodama como "uma pessoa tímida", o que contrasta com os seus relatos de "uma extrema desumanidade", como descreveu Saramago. No entanto, a viúva de Borges justificou tal violência lembrando o passado do escritor. "Em pequeno, Jorge ouviu muitos relatos violentos e, mais tarde, viu matar um homem no Uruguai."

A relação de Borges com a política foi "muito complexa". No seu país foi acusado de ser um "traidor", lembrou Kodama. Por isso ele considerava a Suíça, onde viveu e acabou por falecer, "um exemplo do que podia ser o mundo se todas as pessoas fossem tolerantes e convivessem pacificamente com quem é diferente". O poema Os Conjurados, lido por Fernando Pinto do Amaral, retrata esta visão do escritor argentino.

No final, Saramago foi questionado quanto à actualidade da obra de Jorge Luis Borges. O escritor comparou Borges a "um fisioterapeuta que põe a funcionar tudo o que está dentro do corpo, o que faz bem à saúde". Nesta iniciativa estiveram presentes a secretária de Estado da Cultura, Maria Paula Fernandes dos Santos, o embaixador da Argentina, Jorge Faurie, o escritor Rui Zink e Carlos da Veiga Ferreira, editor da Teorema, que publicou grande parte da obra do escritor argentino.|

Anónimo disse...

http://www.livrosparatodos.net/livros-downloads/jorge-luis-borges-historia-da-eternidade.html